Perdi meu pai em 02 de agosto de 2008… Sérgio, a quem carinhosamente sempre chamamos de “Sé”.
Esse meu texto focará bastante nos nossos últimos dias de convivência que tive ao lado dele. Mas seria muito vago para vocês, que não o conheceram ou não conviveram com ele o suficiente, focar somente nesta época sem antes contar um pouquinho de como tudo começou, e de como foi nossa infância, adolescência e vida adulta ao lado desse cara sensacional.
Então, que tal começarmos pelo início?
Quem aqui escreve é a terceira de cinco filhos, pois esse foi o acordo do meu pai com minha mãe: ele queria ter dez filhos, um time de futebol. Ela, nunca havia pensado em ter filhos. Então chegaram a um meio termo e assim saiu a decisão: 5 filhos seria um bom acordo!
Capítulo I: A Infância… ah, doce infância!
Faz alguns anos já que minha memória anda bem curta… não consigo me lembrar facilmente de compromissos, do que falei, para quem falei. Há alguns dias atrás uma de minhas irmãs me perguntou: “Ligou para tal pessoa para falar sobre aquele assunto?”, e eu respondi boquiaberta: “Não me lembro!”. Um dia depois, e eu não fui capaz de me lembrar sem me esforçar se eu havia ligado para a pessoa ou não! Como pode?! Sim, sei que esse mundo atual nos demanda muitas coisas, são compromissos pipocando a todo momento em nossas agendas, e viramos escravos da tecnologia para nos lembrarmos até de uma simples lista de supermercado. Mas o que me estarrece não é isso! O que me assusta é saber como o nosso cérebro é perfeito! Sou capaz de esquecer assuntos de ontem, de hoje de manhã, mas não me esqueço de momentos importantes da minha infância! Que bárbaro isso!
Não me esqueço do meu pai salvador, na pele de meu herói, que me resgatou por duas vezes do perigo do mundo: naquele dia em que eu, criancinha, em Caraguatatuba, fui parar além da rebentação das ondas porque simplesmente decidi boiar, e não mais me lembrei do mundo! Só caí em mim quando voltei a nadar e aí vi que os seres humanos tinham virado simples pontinhos lá longe, e eu nem sequer conseguia decifrar mais suas silhuetas! E eis que vejo Sé – meu pai Sérgio, a quem carinhosamente sempre chamamos de Sé -, desesperado, nadando muito e gritando “Lembre-se das suas aulas de natação!”. E eu, sempre achando graça em tudo, comecei a rir, me afogando ainda mais por não conseguir me sustentar acima da água. Tudo deu certo: Sé me pegou nos braços e me levou nadando de volta até a praia! Chegou morto de cansaço! E eu rindo… sem perceber o perigo em que tinha me metido!
Hoje, mãe de dois filhos, como entendo!!!
Alguns anos antes desse episódio, fomos visitar uns amigos dele e da minha mãe. Ofereceram-nos aquelas balas soft – sim, aquelas enormes e que tiveram venda proibida por conta dos inúmeros acidentes como esse meu. E então coloquei uma bala roxa na boca, e num surto de ideia de jerico, resolvemos brincar de pega-pega, todos com a bala na boca e correndo para lá e para cá. Lembro-me como se fosse ontem: eu, paradinha em pé na frente do meu pai, já roxa (a la cor da bala), sem ar, sem falar nada, só esperando ele me salvar. No ímpeto de fazer alguma coisa, ele se esquece de qualquer ato de primeiros socorros e simplesmente enfia a mão dele inteira dentro da minha garanta, e pasmem: conseguiu arrancar a bala inteira que estava presa na minha garganta! E eu saí correndo e fui continuar a brincadeira do pega-pega. E meu pai, bem… não me lembro da carinha dele nessa hora porque pra mim tudo correu bem e o que importava era não perder a brincadeira depois daquilo.
Hoje, mãe de dois filhos, como imagino o tamanho que deve ter sido sua aflição!!!
Meu pai, meu herói! Pelos salvamentos? Também! Mas o retrato de minha infância é a foto de uma infância extremamente feliz conduzida por dois heróis: minha mãe Meire (Me) e meu pai Sérgio!
Nessa época nós morávamos na Rua Hamilton Veloso, do Jardim Clipper em São Paulo. Lembro-me de quantas vezes todos nós, crianças da rua, ficamos aguardando o fretado do meu pai apontar lá no fim da rua para o Juiz do futebol descer e vir organizar a bagunça da noite; ficávamos todos sentados na calçada batendo papo, zoando uns aos outros, sorteando os times… e quando ele apontava carregando sua pastinha do trabalho, o alvoroço tomava conta! Ele era o juiz do futebol… o cara ético, honesto, brincalhão, criança grande, que regia a todos naquela orquestra da infância! Que herói!!!
Era ele quem financiava nossas bolas de vôlei quase que quinzenalmente, já que não éramos nada habilidosos e a bola nova sempre caía num vizinho que não a devolvia! Que herói!!!
Era ele quem carregava de malas o carro a cada novo dezembro, levando sua esposa e seus cinco filhotes para conhecer novos lugares do Sul do Brasil… sete dias viajando naquela Caravan antiga, ano após ano… trocando pneus furados durante a viagem, cedendo às escolhas dos nossos hotéis (hoje tenho a dimensão do quanto ele trabalhava para gastar nessas viagens com os hotéis que nós escolhíamos). Que herói!!!
Era ele, com nossa querida mãe, que assistiam pacientemente aos nossos shows noturnos em que nos vestíamos de palhaços, de cantores dublando “Sacrifice” do Elton John… e após os seus aplausos no final, nós cinco saíamos daquela sala nos sentindo os ganhadores do Oscar! Que heróis!!!
Era ele que, num momento financeiro difícil, em que acordávamos pensando que naquela Páscoa nós não teríamos ovo de chocolate para saborear, comprava na padaria dez ovos de sabores diferentes, gastando muito mais do que podia só para ver nossas carinhas felizes quando chegássemos à mesa do café da manhã. Que herói!!!
Era ele que, durante um assalto dentro de nossa casa em que fomos feitos reféns, se tornou o cara mais paciente e tranquilo do mundo para não nos passar o medo que estava sentindo, que hoje eu percebo o quanto deve ter sido gigantesco! Que herói!!!
Era ele que, no Natal, colocava os chocolatinhos de Papai Noel nas meias na parede da sala, e depois nos surpreendia de madrugada todos lambuzados de chocolate pois não aguentávamos esperar pelo dia seguinte. Que herói!!!
Era ele que a cada vez que ia na padaria comprar pão, às 6h da manhã, nos trazia também batons e moedas de chocolate só para ver nosso rostinho feliz logo ao acordar!!!
Era ele que era o herói não só da nossa família, mas de todas as crianças carentes do bairro, quando organizava as festas das crianças gastando uma fortuna com prendas e medalhas, e depois ele mesmo ia até cada barraca recomprando as prendas para contribuir com as obras da Igreja. Que herói!!!
Poderia passar horas, dias, anos, aqui escrevendo cada passagem da minha infância que está mais do que nunca VIVA em minha memória.
Mas assim como a infância, minha fase já adulta ao lado dele também foi mais do que especial!
Mas isso é conversa para um próximo capítulo, o Capítulo II… https://blog.bleev.online/2022/01/31/amamosnuncamorremcapi/.
Até lá, fica a seguinte reflexão para fazermos todos juntos:
Os que amamos nunca morrem simplesmente porque as lembranças são tão fortes e tão enraizadas na nossa alma, que é um legado impossível de ser desenvencilhado de nossa própria existência.